quarta-feira, 11 de novembro de 2015

"A DOCE VIDA": FELLINI E A DESCRENÇA



Roma do final dos anos 50. Numa primeira sequencia “A Doce Vida” capta a estátua de Jesus Cristo suspensa por um helicóptero sobrevoando a cidade de Roma, sendo levada para o Vaticano. Jovens que tomam banho de sol no alto de um prédio acenam para o que veem como um espetáculo fora do comum. Em outra sequencia observa-se uma concorrida apresentação de uma menina que “fala com Nossa Senhora”. Muita gente quer ver de perto a “santinha” como uma nova Bernadette de Soubirous (Lourdes-França). Estes fatos são presenciados por um jornalista que se mostra cada vez mais cético: Marcello Rubini (Marcello Mastroianni). Neste que é seu “alter ego” Federico Fellini representa a sua versão de Roma quando já deixara o jornalismo e se envolvera com o cinema. É o retrato em cinemascope de um desencanto. Não só de uma apreciação de fatos que alimentam a descrença (não só em termos de religião), mas a ideia de que a capital italiana reprisa a sua performance do tempo dos Césares. “A Doce Vida” (La Dolce Vita, Italia, 1960) é um filme capital na filmografia de um dos mais aclamados diretores da cinematografia em qualquer época. Ele deixava a linguagem linear e a compaixão que envolvia suas carismáticas heroínas Gelsomina e Cabíria, como dava uma outra forma aos distantes “vitellonis” que circulavam na noite de Rimini sua terra natal, em “Os Boas-Vidas” (1953). Através de seu Marcello (personagem a interprete) Fellini vê um novo contexto alimentado pelo crescimento da economia e a reconstrução da Itália após o imediato pós-guerra (o conflito terminara em 1945) com os aliados prevendo a formação de um polo eficiente para o combate à ideologia comunista entre os países europeus. Esse foi um momento em que a economia italiana floresceu suscitando um tempo de demandas por maiores benefícios para a população rural – que migrava para a cidade – e a população urbana alimentando-se das melhorias que foram acontecendo no período. Cresce a classe média trazendo a efervescência cultural com evidencia das artes, em especial, o cinema, com a Itália se tornando um polo de circulação de astros e estrelas internacionais. Fellini foi um dos beneficiados, visto que àquela altura já fora agraciado com dois Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (“La Strada”, 1954; e “Noites de Cabíria”, 1957) tendo se tornado, então, um dos nomes de cinema dos mais celebrados. E a pulsão pelo momento que vive fortalece seu interesse em captar o modo como estava vivendo aquele grupo entre os quais se vê incluído. Não sem motivo seu alter-ego é um tipo chamado Marcelo que percorre espaços diversos, convive com figuras de uma sociedade que está com seus valores em decadência. Vive momentos de prazer efêmero, aspirando ser feliz.
O roteiro de “La Dolce Vita”, elaborado pelo próprio Fellini teve o auxilio de Brunelo Rondi, Tullio Pinelli, Ennio Flaiano e, embora sem referência nos créditos, Pier Paolo Pasolini. A estrutura narrativa construída em episódios deixa mais frouxa a composição dos elementos que irão circular em toda a extensão do filme, acronológicos, sem nexo causal, usando Marcelo como narrador/observador participante/corifeu dessa sociedade por onde circula de carro, sendo perseguido por Paparazzo (Walter Santesso), o fotógrafo que o acompanha registrando a presença de celebridades (é o tempo delas) na re-novação de um ambiente preparado para recebe-las. Maddalena(Anouk Aimée) e Emma (Yvonne Forneaux) são as peças-chave de seu envolvimento afetivo. Mas há outras e outros personagens que são introduzidos pelos bastidores, aproveitando-se das entrevistas que coordena entre os quais com pseudo-intelectuais, em busca de definir o que é a felicidade. Da presença da Igreja ao papel do Estado definindo valores e atitudes na sociedade emerge a crítica de Fellini a esse mundo que visita incorporado por Marcello. Há momentos marcantes em “La Dolce Vita”. O banho da estrela norte-americana (a sueca Anita Ekberg) na Fonte de Trevi é um deles. Mas o que me ficou na época em que assisti ao filme pela primeira vez foi a presença de Steiner (Alain Cuny), filosofo que mata a família e se mata demonstrando sua descrença nos valores humanos.
 O filme termina com uma alegórica visão de um pré-final da sociedade com pessoas saídas de uma festa percorrendo a praia e a presença de um estranho peixe (leviatã?). Nesse momento, Marcello vê uma jovem chamando por ele. Mas não a escuta e prossegue andando com os demais festeiros. Sinal de um pessimismo que alguns críticos viram então, na verdade, o endosso de todo o trabalho, um painel de uma cidade e classe social num determinado tempo, de florescimento e de delírios.(Luzia Álvares).

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