domingo, 27 de novembro de 2011

"TIO BOONMEE E OUTRAS VIDAS"


Filmes da estatura de “Tio Boonmee que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (Lung Boonmee Raluek Chat, 2010) do tailandês Apichatpong Weetasethakul dificilmente chegam ao circuito comercial. Narrativa não concessiva, em que a argumentação e o desfecho não são conclusivos, deixa o/a espectador/a livre para diversas opiniões sobre o que vê. E, da mesma forma, pode ser amado e/ou rejeitado. Amado se for compreendido na sua extrema solicitação à natureza, explora uma trilha de ruídos de pássaros e o som do vento, as luzes aparentemente naturais, a floresta e as cavernas sendo convividas entre os animais e as pessoas, tudo, enfim, significando a unidade da vida física e imaterial do ser humano.
O fio condutor do enredo pode-se dizer que evidencia o cotidiano de um ex-combatente da guerra no Laos amargando ter “morto muitos comunistas”, se vê doente dos rins, num constante tratamento pela hemodiálise, e na expectativa de sua partida para um outro plano da existência. E justamente este plano, além da vida material, que é abordado com substância de uma cultura especifica, virtualmente quebrando os limites da existência terrena e das lendas ancestrais. Reunido com alguns parentes, certo dia, Boonmee vê chegar à mesa de jantar, sua esposa falecida há mais de dez anos e o filho que desaparecera há 9, surgindo como um símio de olhos vermelhos. Recebem estas figuras a cunhada de Boonmee e seu sobrinho, afinal quem cuida da sua enfermidade. Todos se admiram da juventude perene da Huay, a mulher que morrera há muitos anos e que aparece como se mantivesse a idade em que deixou o mundo dos vivos. Na conversa entre eles, ela descreve detalhes de seu sepultamento enquanto todos comentam sem espanto. E o jovem filho transformado em animal, expõe as origens de sua aparência quando por curiosidade capturou, em uma fotografia (ele era fotógrafo profissional), uma figura estranha a qual seguiu os passos e em contato com esse animal, veio a incorporar a estranha metamorfose. Todos conversam e só quem tem queixas é o próprio Boonmee, mesmo assim, construindo uma barraca na mata onde passa algumas horas com a cunhada e onde conta o seu passado.
As personagens decidem explorar uma caverna e é aí que o enfermo vai deixar seu corpo físico. Mas nada é “de graça”. Antes há a intervenção de uma lenda, como um sonho, onde uma princesa é despojada de seus bens e descobre o prazer sexual com uma figura mítica marinha. Na caverna, luzes e sombras atestam o mundo em que a lenda, a espiritualidade e a materialidade se mesclam em harmonia. Tudo o que se vê no filme é apresentado como muito natural, esvaziando a cisma de terror que uma abordagem desse feitio poderia causar em um tipo de cinema.
Formalmente é um projeto audacioso. A narrativa é constituída em sua maior parte de planos abertos e fixos. Só percebi um movimento (manual) de câmera e um plano próximo (não chega a ser um close). Há tomadas em que a câmera permanece no enquadramento enquanto os tipos focalizados saem de sua captação. Também não há travelling, não há efeito especial além de uma tomada inicial de Huay em que ela aparece só com a metade do corpo e depois se vai formando totalmente (ou quando simplesmente desaparece). Até a transformação do jovem em símio é suprimida, Nada que escandalize, que leve o folclore regional a um plano sensacionalista.
Creio que o público deve estranhar no filme sua opção pelo contemplativo, a demora das seqüências, a parcimônia dos cortes. É como um ritual tailandês. Impressionante e realmente novo em cinema exibido em gêneros ou formas.
O que dá substância ao filme é o tom comunicativo entre matéria e espírito traduzido na substância da natureza humana. Em certo momento, Tio Boonmee revela a existência integrada desses mundos, sem que isso leve a pensar numa dimensão religiosa, mas na complentação desses espaços vistos de forma unificada. Nesse aspecto, também, o/a espectador/a vai supor que o cineasta tailandês está tentando passar uma crença doutrinária sobre a concepção espírita, mas, na verdade, se trata de reverência à unicidade do ser humano como manifestação do modo de vida desse povo. Excelente! Imperdível. (Luzia Miranda Álvares)

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